Crítica – Um grupo jovem que promete uma longa caminhada de projetos e sucessos – Calixto de Inhamuns
Parafraseando Mario de Andrade, na sua aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, em 1938, posso afirmar que todos os artistas são artesãos, mas nem todos os artesãos são artistas. É possível que alguém seja um artista sem o domínio total das ferramentas e técnicas do fazer artístico, a base artesanal da arte, mas, certamente, não será um bom artista.
Toda arte tem suas ferramentas e as técnicas com as quais manipulamos estas ferramentas. Um ator, por exemplo, tem várias ferramentas como a voz, o corpo, o texto, o espaço cênico e, cada uma delas, tem as técnicas apropriadas para o seu melhor uso. É o correto uso destas ferramentas e técnicas que Mario de Andrade chama da Técnica do Artesanato, técnica esta, que pode ser ensinada, treinada, apreendida e faz parte de qualquer boa metodologia no ensino de quaisquer artes ou ofícios.
As outras técnicas listadas pelo mestre, além da Técnica do Artesanato, são a Técnica da Virtuosidade e a Técnica Pessoal.
A Técnica da Virtuosidade nasce do estudo dos grandes mestres, dos virtuosos, daqueles que realizaram grandes obras. Você os estuda não para repetir o que eles fizeram, mas para entender como eles resolveram os seus problemas, quais ferramentas e técnicas usaram, no seu tempo e no seu contexto, para desenvolverem o seu trabalho. É importante estudar a obra, mas, mais importante ainda, é o caminho, norteado por teorias e práticas, que usaram para a realização da mesma.
A Técnica Pessoal está mais ligada às aptidões de cada um que podem ser genéticas, apreendidas de exemplos, ou de ver ou de ler, porém, mesmo uma pessoa com poucas aptidões, através do desenvolvimento das ferramentas e técnicas que podem ser estudadas e praticadas, pode ampliar sua capacidade de criar e realizar arte. É como se fosse um triângulo onde nos vértices inferiores estão o estudo e a prática e, no vértice, superior, a técnica pessoal. Amplie a base desenvolvendo o estudo e a prática das ferramentas com suas respectivas técnica e, certamente, sua Técnica Pessoal aumentará e mais você avança na criação artística.
O Grupo Circo Teatro Palombar, da Zona Leste, da Cidade de São Paulo, dentro de uma perspectiva do momento do grupo, pode ser usado como modelo das três técnicas apregoadas pelo mestre Mario de Andrade. Os seus jovens integrantes cantam, dançam, representam e executam números de acrobacias, malabares e outras variedades circenses, com a técnica adquirida em estudos e práticas; se apresentam diante do público com o foco no seu público como sempre fazem os grandes mestres das artes circenses; e já mostram razoáveis técnicas pessoais que vão se ampliar pela dedicação que eles mostram no fazer artístico.
Coletivamente são fortes e, individualmente, formam uma árvore de encantos que vi plantada na Praça Oscar da Silva, diante do Casarão da Vila Guilherme, na Zona Norte, da Cidade de São Paulo, no dia 24.03.2018, e no torno da qual foi se juntando pessoas para assistir ao espetáculo A Novidade é Milenar criado a partir das tradições circenses pelos componentes do grupo, inclusive, aqueles que não estão no palco pessoalmente, mas foram fundamentais na criação, realização e manutenção do espetáculo.
A reação do público da rua é espontânea e direta, não gostou, vai embora, mas diante de um espetáculo feito com garra por artistas bem treinados, além do melodrama que amarrava os números e conduzia o show, foi ficando, atraindo mais gente e, ao final, um ótimo público os aplaudiu com entusiasmo e alegria.
Em um espetáculo de circo, principalmente nos números de acrobacias, fica mais claro o preparo técnico dos participantes. Não dá para enganar. Você se joga no espaço e tem que cair corretamente ao risco de se machucar ou machucar o companheiro, ou companheiros, do número. E, além do risco, o artista precisa ter a consciência que está sendo visto, que o público está ali para assistir ao seu desempenho e que precisa atender a estas expectativas, pois, no mundo do circo, agradar ao seu público é a principal função. Sempre, e em primeiro lugar, quem os mantém e lhes dá alento, o público.
O que não se pode esquecer nunca é que um artista não é um atleta. O atleta busca vitórias, o artista agradar ao público. O público vai às competições para torcer pelo atleta, ao circo, ou ao teatro, para gostar do artista. No circo, em um número aparentemente perigoso, quando o artista erra, ao contrário das competições, tem uma segunda chance, não está eliminado. Os bons artistas, quando erram, aproveitam esta torcida do público, aumentam o aparente perigo e partem para uma segunda chance. Esta segunda tentativa, pelo espetáculo, vira um caso de vida ou morte, por isso, alguns fingem até errar a primeira vez. Ah, a segunda tentativa… Rufos de tambores, silêncio, os parceiros ao seu lado mostram grande preocupação, e ele, nesta grande expectativa, dá o seu salto e, mesmo sem uma grande perfeição técnica, corre para os aplausos, a consagração. O publico não quer perfeição, quer emoção, e isto ficou claro nos aplausos dirigidos aos artistas Barbara Maria, Giuseppe Farina, Guilherme Torres, Henrique Nobre, Larissa Evelyn, Leonardo Galdino, Marcelo Nobre, Paulo Santos, Rafael Garcia e Vinicius Mauricio.
O espetáculo A Novidade é Milenar, do Grupo Circo Teatro Palombar, está, também, bem conduzido na dramaturgia, na encenação e na parte musical.
Na dramaturgia do texto, a história da família proprietária do circo, uma criação coletiva, onde estão presentes vários ingredientes melodramáticos como a luta do bem contra o mal, uma vilã sem piedade, uma mocinha aleijada vítima de um acidente, um moço para defendê-la e outros efeitos, amarra bem o desenvolvimento do espetáculo. O grupo, pelo menos neste espetáculo, não faz como no circo-teatro tradicional onde o drama é separado dos outros números, ou, em alguns casos até a única atração, mas cria uma rede proteção através de uma história onde o dramático amarra e conduz os números de variedades.
A dramaturgia da encenação, sobre a batuta de Adriano Mauriz com a assistência de Ricardo Big, tem uma qualidade excepcional, a simplicidade, e uma virtude extraordinária, a delicadeza e o respeito com o momento dos jovens artistas do espetáculo. Tendo como rede de proteção o trabalho cenográfico de Celso Rorato que funciona como um telão dos circos tradicionais facilitando as surpresas cênicas, as trocas de figurinos, o encadeamento dos números e a apresentação dos músicos em um plano mais elevado, o espetáculo flui e caminha para os aplausos finais de forma contínua e agradável.
A música, totalmente autoral, com direção de Joílson dos Santos, é outro grande momento do espetáculo. Todos, ou a maioria dos participantes, tocam algum instrumento e cantam de acordo com o exigido pelo espetáculo. No circo, um antigo artista que entrevistei dizia: “você não tem que cantar ou tocar bem, tem que parecer que toca e canta bem”. É o mundo do faz de conta, da ilusão, mas pra acontecer tem que treinar muito, pois, como exemplo, quem se arrisca na corda bamba sem técnica ou treino vai de encontro à serragem, ou no caso da rua, ao asfalto.
Vida longa, cheia de estudos teóricos e práticas, ao Grupo Circo Teatro Palombar. As ruas, praças, picadeiros, teatros e espaços alternativos agradecerão.